E as fotos da lua-de-mel não
tem?
Os mais jovens não sabem de
certos escândalos da família real britânica.O meu pai stalinista contava,na mesa
de jantar,como tinha sido escandalosa a recusa do duque de Windsor em ser
rei,para se casar com a divorciada Wally Simpson.Porque o escândalo eu lhe
perguntei ,e ele não soube me responder.
O escândalo se dá porque
aparentemente as monarquias expressam a união da mediação política com o núcleo
central da sociedade ,cultural e pedagógico,que é a família,cuja conformação
básica vem desde a Idade Média.
O republicanismo romano
repudiava os reis ou os imperadores por
causa do seu autoritarismo.A vinculação das monarquias,a partir da referida
Idade Média,com a família,servia para evitar esta crítica:a monarquia era
diferente dos impérios.Os impérios são uma imposição,mas as monarquias têm um
propósito legítimo de garantir a coesão social através da família e educá-la
nos “ bons costumes e valores”.Nem
sempre esta distinção ocorreu.Vemos Napoleão,como Imperador,ter uma “ família
real”.A inclusão da família servia para tudo:monarquias constitucionais,impérios
em busca de legitimação e Reinados.
Diante disto o republicanismo
moderno,diferentemente do antigo,apresentou outras razões para a sua rejeição.E
avulta em importância a atitude tomada
por George Washington nos Estados Unidos nascentes,que recusou a coroa que lhe
fora oferecida,por achar que não era função dos políticos determinar como as
famílias individualmente deveriam ser dirigidas,no que é um fundamento do
individualismo liberal anglo-saxônico(inspirado em Locke).Ninguém deve se
intrometer na vida privada.
Os republicanos clássicos do
continente europeu,absorveram estas idéias mais ou menos,de acordo com outras
preocupações,mas de modo geral perceberam que a ingerência política das
monarquias nas famílias suplantava o seu propalado papel
cultural,espiritual(religioso)ou pedagógico.
Ainda que o Marquês de Sade tenha
acusado o republicanismo de fazer o mesmo que as monarquias ,se impondo pela mediação do público(que diluiria os indivíduos[ver
a análise de Claude Lefort sobre Sade “
Franceses mais um esforço se quereis ser republicanos”,in “ Escola de
Libertinagem”])a verdade é que(não contradizendo Sade)a República moderna
dialoga e se dissocia como uma gangorra com a distinção público e privado,trazido
pelo capitalismo e a religião protestante.
Estas suas hesitações favorecem a
continuidade da monarquia.A república deixa os cidadãos ao léu ;então um
monarca é alguém mais visível a quem podemos pedir conselho e com quem podemos
dialogar.
Se por um lado a distinção público
e privado cria problemas,como a invasão
pelo público do privado,pelo mercado da mídia,pelo capitalismo,dialeticamente
falando,oferece oportunidades de proteção do privado,pelo direito,que nem o
republicanismo moderno nem o socialismo(modalidade de ultra-repubicanismo[Sade
de novo]) sabem utilizar como deveriam.
Esta é uma das razões pelas
quais a monarquia continua em muitos lugares e é proposta ainda,como acontece
aqui no Brasil,em que algumas direitas defendem a volta dos Bragança.O monarca
é alguém mais visível e presente.
Esta luta é a de duas
narrativas,duas relações com o mercado capitalista e as necessidades culturais
e espirituais do povo.Quando eu estudava Direito,fiquei chocado ao ler em Paulo
Bonavides o conceito de “ monarquia republicana”,mas depois percebi que ele
tinha razão em achar algumas monarquias mais republicanas de fato do que certas repúblicas.A república brasileira,como os
sociólogos mostram,tem mais pé na monarquia,na necessidade de um “ pai” que
ouça o povo,do que nela, indistinta e indiferente (mais afeita ao Marquês de
Sade)como é.O Brasil é como dizia Rousseau no “ Contrato Social”,um “ povo
tutelado”(precisa[ainda]de tutela).
Acima de tudo o evento de mídia
emprega milhares de pessoas que cotidianamente acompanham os atos dos monarcas
,como o casamento do Princípe Harry.Neste diálogo com o povo,busca-se um termo de união com a
casa real e os seus conceitos morais,mantendo-a no trono.
Esta é a explicação do escândalo
do Duque de Windsor na década de 30:naquele tempo era impensável que alguém não
quisesse ser Rei;que fosse mais importante se casar com a pessoa amada,cuja relação
não tinha nenhum estatuto de definitiva.Era como uma confirmação distorcida do conto de fadas.O
reconhecimento do papel igualmente importante do privado sobre a cena
pública.Em nome de um amor definitivo vale a pena perder poder sobre todos.Mas,por
trás havia a visão medieval de que os indivíduos,os cidadãos não contam,mas sua
posição social.Os nazistas ,que preconizavam o valor individual da raça,eram
mais modernos e republicanos que muitos ainda hoje.Afirma-se que o Duque era
neonazista e chegou a ser recebido por Hitler.Se Hitler dominasse a Inglaterra,segundo
suas palavras,manteria a coroa e o colocaria de novo no trono,associando-o mais
fortemente à soberania real do povo(não à família[à raça]).
Os Windsor souberam administrar
esta crise fazendo exatamente este discurso de diálogo e de reconhecimento de
novos valores.Isto põe diante de nós alguns problemas decisivos:este equilíbrio
é legitimo,eterno?Porque tem tanta
difusão?
A segunda pergunta eu já
parcialmente respondi,mas falta dizer que
a casa real inglesa sintetiza todo um complexo cultural que vem desde a
Idade Média e que é aceito pela maioria dos povos ocidentais.Casamento dos
filhos,” macho e fêmea os gerou”,coesão social,acima da democracia e dos
problemas sociais a solucionar e muitas outras questões.
A primeira pergunta eu respondo
com o artigo todo,já que é tudo uma questão política de legitimação de
interesses específicos.Mas o certo é sepultar essa idéia antiquada.
Há nesta luta de republicanos e
monarquistas,que o positivismo erradamente pensou superada,uma luta para ir
além de uma época ,de valores que não deviam ser mais importantes do que a
individualidade expressa em cidadania.A cidadania,como valor igualitário,político
e jurídico,se expressa melhor na república e tem que ser destinação do homem moderno,porque
na monarquia o monarca é erradamente
identificado à nação.Ser súdito ou vassalo de um monarca implica em se
sacrificar por ele ou pela nação?Na verdade não há diferença,pois o monarca é a
nação,numa mistura que seria tida como totalitária em outros
lugares,notadamente republicanos.A proposta é defender a nação na figura do
rei,mas no fundo é preservar tais interesses personalíssimos.
Logo depois da abdicação do Duque
de Windsor a grande questão da casa real britânica foi ,em plena 2a Guerra
Mundial,saber se a herdeira do trono ,a futura Elizabeth II,poderia dela
participar,arriscando a vida,como se
outro não pudesse substituí-la(como se Harry não fosse igual ao seu irmão
primogênito).
Quantos problemas não teriam
sido evitados se o rei Ludwig II da Baviera tivesse o direito de abdicar em
favor dos seus amores homoafetivos?Quantos problemas surgiriam se a
Lady Di tivesse aceitado o esquema
hipócrita da casa real,que obriga as pessoas a deixarem os seus desejos
pessoais em nome da “coisa pública”(o privado transmudado em público),como se
não fosse esta responsabilidade de todos e não de um só?
Apesar de todas as
justificativas a monarquia falseia a
verdade óbvia de que ninguém precisa ser vassalo para se sacrificar por seu país,já que qualquer um é capaz,hoje, de entender o valor intrínseco
de sua cidadania e a necessidade de sua
proteção.As guerras só são validas para proteger este direito decisório comum(republicano).As
monarquias funcionam ainda com um pressuposto irreal de que algumas pessoas são
providenciais.Como se um casamento público induzisse de fato a um comportamento
melhor ou pior na vida privada e íntima das pessoas.Tal modelação é uma via
direta e indireta de repressão e serve de propaganda a um país que vive desde a
2ª Guerra entre o isolamento (brexit)e a dependência dos Estados Unidos.Numa
simbiose perversa do passado com o capitalismo,que gera empregos para tablóides
nojentos e televisões sem assunto,reproduz-se uma narrativa vazia e distorcida
que mantém a hegemonia de um interesse privado sobre o público,com a anuência
deste último,que se deixa estuprar.
Numa atitude mais moderna e
crítica ,quem tem uma visão republicana concreta(como eu modestamente)deve
compreender que o republicanismo tem que prevalecer,para que prevaleça a
verdade dos fatos,não o conto de fadas:que um casamento como este sobrevive em
função de muitos elementos materiais,como a riqueza,para além do desejo e do Amor;que não têm correspondência no dia-a-dia real.
Eu olho estes fatos (não vi o
casamento pelo amor de Deus!Estava fazendo outra coisa[também só vejo ocasionalmente
programas policiais])para entender como o mundo funciona e ter condições de
mudá-lo.Eu faço como Gramsci,na sua concepção de Ideologia e de Deus:Deus pode não existir objetivamente,mas
existe como valor,psicologia,significado,na
consciência de quem acredita nele(para o bem e para o mal).Ajo como Gramsci,mas
no sentido de ir até onde eu devo conhecer a realidade,nos seus limites.
No Brasil a monarquia era tida
como fadada ao fenecimento,porque aquilo que o Imperador fazia a República
poderia fazer do mesmo jeito.Por isto sou
republicano e parlamentarista:se existe a necessidade de uma figura que
ouça o povo,que seja mais visível,um presidente no parlamentarismo,como chefe
da nação,distinto do chefe do executivo,ocupa um lugar idêntico e até melhor.Esta
distinção formal educa,de plano.
No Reino Unido ,deste jeito,o
fim da monarquia e da Idade Média só vai
acontecer quando um herdeiro for homoafetivo e quiser se casar com seu
parceiro.
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